Vão-se os anéis



Brasília - Três dias depois da aprovação no dia 10 de maio pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 103/2011, que altera o Parágrafo 2º do Artigo 155 da Constituição Federal para possibilitar a aplicação da alíquota interestadual e da partilha às compras feitas por “pessoas físicas, contribuintes ou não do imposto”, nas operações não presenciais ou por meio eletrônico, a Agência Brasil publicou matéria intitulada Emenda sobre imposto para comércio eletrônico não ameniza guerra fiscal, dizem tributaristas[1]. Na matéria, a decisão da CCJ é repercutida com dois representantes de entidades que congregam auditores fiscais e o tributarista e ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel. Os três especialistas fazem avaliações convergentes de que a PEC é apenas “paliativa” em torno de um ponto muito específico, sem mexer com os aspectos do sistema que precisam mudar.
O leitor André Horta Melo, de Natal (RN), considerou tendenciosa a matéria e enviou o seguinte comentário à ouvidoria: “Dois bilhões de reais que estavam atravancados nos estados mais ricos serão redistribuídos com estados mais pobres. O comércio eletrônico é [era] uma moeda de negociação indecorosa de estados mais ricos no bojo da reforma tributária e agora não poderá mais ser usado nas tratativas, o que representa uma vantagem comparativa inequívoca e evidente para os estados mais pobres nas disputas políticas a partir da aprovação da emenda. As opiniões manifestadas são equivocadas. Mas pior que isso: são equivocadas para o propósito de interesses de estados mais ricos. Faltou o básico ao jornalismo, ouvir o outro lado, ouvir especialistas filiados à causa do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, ou mesmo ouvir os signatários do Protocolo nº 21/2011 [documento assinado em 01/04/2011 pelos secretários de Fazenda de 18 estados em uma tentativa, logo frustrada por ações na Justiça, de efetuar a mesma mudança preconizada na PEC 103/2011]. Os presidentes de associações fiscais paulistas são especialistas em proteção de carreiras de fiscalização, não são tributaristas. Essa semântica é reservada a notórios estudiosos do direito tributário. Não impede que aqueles o sejam, mas não implica”.
Em relação aos seus questionamentos, a Diretoria de Jornalismo da EBC informou que, na verdade, não foi ouvido nenhum "presidente de associação paulista", mas os presidentes de entidades nacionais como Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional) e a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip); além do ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, que também não é paulista. Em nenhum momento, foi ouvido ou reproduzido comentário de fonte de nenhum "lado", estado ou região. Assinalamos, por fim, que a matéria reproduz trecho do relatório contrário aos estados mais ricos, produzido por um senador de Alagoas (que aliás contrariou a bancada paulista).
Essa discussão nos dá oportunidade de mostrar que o sistema tributário brasileiro é permanentemente alvo de críticas por diversas razões: ineficiência, onerosidade, complexidade e desigualdade, entre outras. Porém, como observa Álvaro Sólon de França, presidente da Anfip, na matéria publicada pela Agência Brasil, apesar da “unanimidade” de que a legislação tributária no Brasil precisa de uma ampla reforma, “tudo que é unanimidade no Brasil não anda”, ironiza. “Todos acham que [a reforma tributária] deve ser feita, porém não conseguem encontrar uma proposta que atenda a interesses díspares”.
Entre as injustiças incorporadas no sistema atual está a regra que determina a destinação dos valores arrecadados pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), que é a principal fonte de tributos dos estados. Por favorecer os estados de origem dos produtos e serviços, a regra tende a agravar as desigualdades que já existem entre os estados ricos e os estados pobres. No comércio interestadual, uma parte da alíquota paga pelo consumidor final fica no estado de destino enquanto a outra parte volta para o estado de origem do produto. Nas transações onde o vendedor é de um estado rico e o comprador de um estado pobre, normalmente 10% do ICMS arrecadado ficam no estado de destino e 7% voltam para o estado de origem.
Uma situação que não foi contemplada na Constituição Federal de 1988 é o comércio eletrônico. Neste caso, pelo fato de o comprador não ser pessoa jurídica e contribuinte ao ICMS, a alíquota cobrada é a interna, como se a venda fosse dentro do estado da empresa vendedora, e não há partilha. Todo o imposto vai para o estado de origem, que é na maioria das vezes São Paulo sede das empresas que, estima-se, são responsáveis por 60% das vendas nesse setor no país. E foi para corrigir esta anomalia que a CCJ aprovou a PEC. No relatório apresentado pelo senador Renan Calheiros à CCJ, não consta a estimativa de quanto a mudança deverá beneficiar as regiões pobres, mas aparece o valor que corresponde ao faturamento anual do comércio eletrônico no Brasil. Segundo o senador, “de acordo com os dados coletados, o faturamento do comércio eletrônico passou de R$ 540 milhões, em 2001, para R$ 18,7 bilhões, em 2011”.[2] Este valor é reproduzido em várias matérias publicadas pela Agência Brasil.
Vejamos, então, alguns cálculos simples: se a PEC for aprovada, a vitória vai ser, de fato, mais de princípios do que de valores monetários. Em relação ao conjunto de prejuízos que a atual legislação fiscal acarreta às regiões pobres do país, as consequências da aprovação da PEC serão bastante modestas. Em relação a outras propostas de mudanças específicas no ICMS que afetam estados ricos e pobres e provocam protestos veementes dos governadores dos estados cujas receitas são ameaçadas, as quantias envolvidas na redistribuição da PEC do comércio eletrônico são muito pequenas.
A participação das regiões pobres, mais Espírito Santo, corresponde a um pouco mais que 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. No comércio eletrônico, por várias razões bastante óbvias, essa participação deve ser ainda menor, mas vamos ficar com os 30%. Isso significa que dos R$ 2,3 bilhões de ICMS gerados pelo setor em 2011, quando o faturamento alcançou R$ 18,7 bilhões, as regiões pobres são responsáveis por R$ 690 milhões. Ainda há o “sangramento”. Uma parte do imposto arrecadado nas regiões pobres volta para os estados de origem dos produtos. Pela proposta feita pelo relator da PEC, a partilha será igual à regra em vigor para as transações interestaduais entre as regiões ricas e as regiões pobres: 10% para os estados de destino e 7% para os estados de origem. Então, dos R$ 690 milhões, R$ 284 milhões voltarão para as regiões ricas, deixando a diferença, aproximadamente R$ 405 milhões, nas regiões pobres, mais Espírito Santo. Essa quantia corresponde a 0,4% dos R$ 97,906 bilhões de ICMS arrecadados por estes estados em 2011.[3]Consideravelmente menos que os R$ 2 bilhões mencionados pelo leitor e o “acréscimo de cerca de R$ 2,3 bilhões para os estados mais pobres”, de acordo com o relator da PEC numa declaração reproduzida pela Agência Senado em 04/05. [4]
Para o Rio Grande do Norte, que responde por 3,25% do ICMS arrecadado nos estados das regiões pobres, isso significaria um acréscimo de em torno de R$ 13,2 milhões nos cofres do governo estadual, que arrecadou R$ 3,2 bilhões em ICMS em 2011. Claro que esses recursos, se forem utilizados para as melhoras que o nosso leitor aponta, serão muito bem-vindos, mas para colocá-los em uma escala relativa, atentemos para os valores que os governadores de dois estados cujos portos movimentam mercadorias importadas que são vendidas para outros estados dizem que perderão se houver uma mudança nas regras em outra área onde o ICMS é cobrado: “segundo [Raimundo]Colombo, o estado[de Santa Catarina] perderá até R$ 950 milhões por ano com a unificação do ICMS interestadual para mercadorias importadas”; “de acordo com [Renato] Casagrande, o Espírito Santo perderá R$ 1 bilhão a cada ano com a unificação do ICMS interestadual para mercadorias importadas. O dinheiro, explicou, deixará de ser arrecadado pelos estados e municípios com a transferência de empresas para outros estados. Segundo ele, o pacote de compensações oferecido pelo governo federal para os estados afetados pela medida é insuficiente”[5].
Diante desses valores, dezenas de vezes maiores, e da insistência dos governos dos estados em receber compensações do governo federal pelas perdas causadas por mudanças nas regras, talvez possamos entender melhor os argumentos dos especialistas entrevistados na matéria que foi alvo das reclamações do nosso leitor. Como também concordamos com o nosso leitor quando comenta que “o comercio eletrônico é [era] uma moeda de negociação indecorosa de estados mais ricos no bojo da reforma tributária e agora não poderá mais ser usado nas tratativas”. Só que para os estados mais ricos trata-se de algo parecido com os anéis no ditado que diz: “vão-se os anéis e ficam os dedos”. Anéis de menor valor ainda, levando em conta que o benefício que a mudança proposta na PEC do comércio eletrônico representará para os estados mais pobres corresponde a apenas uma fatia – menos de 20% - do ICMS arrecadado pelo setor.
Boa leitura e até a próxima semana.

Postar um comentário

0 Comentários