Relatos de casos


Agência Brasil

Brasília - A Coluna da Ouvidoria desta semana tem a satisfação de lidar com um tema que mostra que a participação de um público atento e consciente é ao mesmo tempo importante para melhorar a qualidade das informações que circulam nos meios de comunicação social e indispensável para garantir a precisão dos dados utilizados pelas autoridades governamentais na formulação e na execução das políticas públicas. Trata-se das repercussões de uma matéria publicada pela Agência Brasil no dia 31 de janeiro sobre a recente decisão do governo francês de suspender as vendas do anticoncepcional Diane 35 depois da divulgação de relatos de graves problemas de saúde decorrentes do seu uso [1].
No que se refere ao Brasil, a matéria diz que “o medicamento também é comercializado no Brasil e está sendo avaliado pelas autoridades de saúde. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária [Anvisa] informou que está acompanhando o caso para avaliar que medidas devem ser tomadas. Segundo informações da agência brasileira, até o momento, não foram notificados relatos de profissionais de saúde sobre problemas envolvendo o uso do Diane 35”.
Logo após a publicação da matéria, três leitoras escreveram à ouvidoria contando os problemas que elas ou membros da família enfrentaram devido ao uso do medicamento. Uma delas, Thais Xavier Rezende, relatou a incidência de embolia causada por uma trombose venosa profunda. Efeito colateral responsável pela preocupação das autoridades sanitárias francesas. “Tive embolia pulmonar maciça em dezembro de 2011 e no diagnóstico o médico culpou o remédio anticoncepcional utilizado, que era o Diane 35. Eu corri grande risco de vida e só por um milagre estou aqui hoje contando. Gostaria muito do contato da repórter para saber como posso contar meu caso ao Ministério da Saúde”, relatou Thais.
Outra leitora, Martha Daud, escreveu que sua filha de 17 anos, que tomava o Diane 35 para o tratamento da acne, sofreu uma trombose cerebral e terminou na unidade de terapia intensiva (UTI) para tratar as dores de cabeça e o turvamento da visão que a acometiam. Os exames constataram que a causa da trombose foi o hormônio presente no Diane 35. A leitora comentou: “Quando vi a notícia a respeito do Diane 35 gelei! No Brasil fica difícil comprovar algumas coisas, ou mesmo quando acontece estamos tão atordoados que não vamos em frente, pois o que queremos é que nossos entes queridos se recuperem [...]. Aqui no Brasil não há relato, mas existem com certeza as [mulheres] que morreram e nem se deram conta do que era [a causa]”.
As mensagens foram encaminhadas à Diretoria de Jornalismo, que assim respondeu à leitora Thais: "A Agência Brasil informa à leitora que a repórter vai procurá-la para que relate seu caso. A partir daí, será possível, inclusive, ampliar o tema, com mais entrevistas, com médicos, por exemplo. Poderá render outra reportagem sobre o tema”.
No dia 12 de fevereiro, a Agência Brasil cumpriu sua palavra com a publicação de mais duas reportagens [2]. A leitora Thais foi procurada para complementar seu depoimento. Trechos da correspondência de outra leitora, Rosana Lopes Lima, foram citados. Dois médicos, um angiologista e um ginecologista foram entrevistados. Informações novas foram acrescentadas para dirimir várias das dúvidas surgidas a partir da leitura da matéria anterior, como segue:

1) O sistema de notificação da Anvisa: “O registro médico dos casos de trombose desenvolvidos por mulheres que usam hormônios não é obrigatório, de acordo com as regras da Anvisa. A falta da exigência talvez explique a ausência de ocorrências no Brasil.” "'A solução está em uma conscientização dos profissionais sobre a importância de notificar esses eventos, sejam eles quais forem', destacou a assessoria do órgão regulador”.
2) A autorização do Diane 35 pela Anvisa: “O angiologista [...] lembra que o medicamento não tem autorização para ser vendido como contraceptivo. De acordo com a Anvisa, o remédio está registrado no Brasil desde 2002… para o tratamento de distúrbios andrógenos dependentes na mulher, como a acne, principalmente nas formas pronunciadas e naquelas acompanhadas de seborreia, inflamações ou formação de nódulos, e para casos leves de hirsutismo [crescimento excessivo de pelos na mulher] e síndrome de ovários policísticos.”
3) Os riscos dos hormônios anticoncepcionais: “O hormônio condiciona o maior risco. Para quem toma progesterona e outros hormônios, aumentam os fatores de coagulação.” “Pelas estatísticas médicas, o risco de formação de trombose feminina, considerando a população geral, não ultrapassa cinco casos em cada 10 mil mulheres. Quando a mulher começa a tomar pílula, a proporção passa a ser de nove casos para cada 10 mil mulheres.”  “Os riscos [...] são conhecidos há muito tempo e estão nas bulas dos remédios.”
4) Os perigos da automedicação e os fatores de risco: “A pílula é segura. Mas, o uso indiscriminado não deve ocorrer e sabemos que muitas mulheres tomam pílulas indicadas por amigas ou vizinhas.”  “Muitos problemas poderiam ser evitados se as mulheres se submetessem a análises médicas de risco, que podem identificar predisposições por histórico das doenças na família ou por obesidade, sedentarismo e tabagismo.” “A bula do medicamento já tem as informações de que o mesmo não deve ser utilizado na presença ou histórico de processos trombóticos/tromboembólicos arteriais ou venosos.”
Por ter acatado as demandas das leitoras e aprofundado o tratamento do tema, a Agência Brasil demonstrou sua capacidade de dialogar com seu público. Contudo, não podemos deixar de observar que restam ainda alguns pontos que carecem de complementação ou de uma apuração maior:
1) Se a Anvisa nunca autorizou o uso da Diane 35 como anticoncepcional, qual é a posição do órgão em relação à sua utilização para este fim? Por um lado, a Anvisa diz que o medicamento só foi autorizado para o tratamento das condições das quais os estudos clínicos foram submetidos para sua análise. Por outro, nos seus boletins se refere ao medicamento como anticoncepcional sem nenhuma ressalva.
2) Os médicos citados nas matérias – e a Bayer, que fabrica o medicamento - dizem que o Diane 35 não é diferente dos demais anticoncepcionais hormonais e que os riscos de tromboses venosas são os mesmos. No entanto, há vários estudos que concluíram que os riscos desses problemas apresentados pelos anticoncepcionais da terceira geração são o dobro dos da segunda geração e que os riscos decorrentes do uso do acetato de ciproterona (que diferencia o Diane 35 e seus genéricos dos demais anticoncepcionais da terceira geração) são ainda maiores [3]. Embora existam outros estudos que não descobriram diferenças entre os anticoncepcionais em relação a esses riscos, eles são uma minoria e, se de fato as diferenças existirem, isso significa que em cada 2 mil mulheres que tomam anticoncepcionais da terceira geração, se passassem a tomar os da segunda geração, haveria um caso a menos de trombose venosa profunda.
3)  Faltou à reportagem ouvir especialistas e pesquisadores independentes. Uma consulta da Plataforma Lattes é sempre recomendável e neste caso teria revelado que a professora Telma Barbosa Gadelha da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) está desde 2010 desenvolvendo um projeto de pesquisa chamado Estudo do Risco de Tromboembolismo Venoso Associado ao uso de Contraceptivos Estrogênicos: Características Clínicas e Fatores de Risco Associados” [4].
4) Em relação à decisão do governo francês, o ginecologista entrevistado pela Agência Brasil diz que “a decisão instiga mais temor do que informa. Não sabemos o que motivou a decisão da França porque o risco é muito pequeno e não se trata de um estudo clínico, mas de relatos de casos”. No entanto, muitos dos estudos realizados depois que um medicamento é lançado no mercado não são estudos clínicos; são estudos epidemiológicos conhecidos como estudos de caso-controle ou estudos de corte que utilizam bancos de dados coletados por instituições de saúde, como hospitais e serviços nacionais de saúde, e registros nacionais e são constituídos basicamente de “relatos de casos”. Os estudos citados no item 2 são desse tipo.
5) Para esses estudos, quanto mais completa a notificação, maior a confiabilidade dos resultados. Daí a importância da participação do público, além dos profissionais de saúde. Em uma das matérias, a Agência Brasil informa que o sistema de notificação da Anvisa (Notivisa) “é aberto a qualquer profissional de saúde e aos próprios usuários”. Faltou divulgar o link onde o cidadão pode fazer sua notificação [5].
Até a próxima semana!

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