LÁ, PAZ

Jornal da Estância 

Carlos: Acordando agora, é?
Diego: Dormindo um pouco mais. Hoje é o meu dia de dormir lá fora e a minha garganta está ficando cada vez pior. Aproveitei pra esticar um pouco além da hora… Que cheiro é este?
Carlos: Acha que o óleo está muito velho?
Diego: Não, acho que não. Está até cheirando bem. Parece - 
Carlos: Pastel de escabeche.
Diego: Não sabia que ainda tinha sobrado legumes.
Carlos: É de carne.
Diego: E onde você arrumou?
Carlos: Lembra que comemos um pastel inesquecível na Praça São Francisco, antes de sairmos de La Paz?
Diego: O óleo que aquele cara usava era tão preto que eu não acreditei quando ele tirou a massa de pastel lá do fundo, branquinha, sem ter queimado nada ou contaminado o salgado com aquele liquido escuro.
Carlos: E ainda disse que era escuro por conta dos 'temperos especiais'.
(Risos. Entra Hugo)
Hugo: Trouxe os tomates recheados de escabeche.
Diego: É de carne também?
Hugo: Não. É de "flango".
Diego: Vocês não fizeram aquele recheio do chinês de Ribeirão, certo?
Hugo: Cara, era o que tinha de vivo na rua. Se você achar coisa melhor é só falar. 
Diego: Não sei se era a fome, mas o pastel aquele dia só ficou ruim porque o chinês, que falou que só tinha pastel de "flango", vendeu tudo o que ele tinha mais barato pra fechar mais cedo e -
Hugo: Eu comi uns três.
Carlos: O meu foi só dois mesmo.
Diego: Deixa eu terminar… Aí veio umas três pombas pra cima da gente...
Hugo: (interrompe) E o maldito do china começou a gritar pras pomba: "Xô flango, xô flango".
Diego: Nossa… Eu quis morrer aquela hora. Acho que eu vomitei até uns pedaços de pena depois.
Carlos: E as pombas quase nos atacaram, como se fôssemos nós os assassinos das primas, filhas, mães, tias delas...
(Alguém começa a tossir)
Carlos: O seu pai acordou. Ele parece que não está muito bem.
Diego: Entre o pastel e o tomate, o que vocês acham que não está tão ruim pra ele comer?
Hugo: Acho que não seria bom ele comer dessa fritura. Isso aí é resto de óleo de cozinha. Pra virar biodiesel ainda é preciso muito trabalho. De bom esse óleo não tem muita coisa. Precisa filtrar muito. Pega um tomate desses que acho que vai ser melhor.
(Carlos pega um tomate recheado) 
Diego: Pai, você precisa comer alguma coisa.
(tosse)
Diego: Segura aqui. Você precisa comer. 
Pai: Eu não quero comer.
Diego: Como está se sentindo?
Pai: Estou bem, não precisa ficar preocupado. Estava pensando na sua mãe, na tia de quase todos que estão aqui, e fiquei com vontade de pedir desculpas.
Diego: Nós é que insistimos com você pra vir, não precisa -
Pai: Queria pedir desculpas por ter trazido vocês comigo. Ouviram? Mil vezes desculpas. Não sabia que ia ser assim. Espero que o nome dessa cidade nunca mais seja repetida por algum de nós, que seja banida do nosso país, que seja extinta da nossa memória. A gente acaba se sentindo sem espaço, com vontade de sair correndo, de conhecer outros lugares, de achar que o que já temos ainda é pouco, que ainda pode ser melhor… E olha onde viemos parar... São oito camas sem nenhum lençol aqui dentro... E outra ali fora. A única vontade que eu tenho quando chego aqui é de deitar e ficar calado, envergonhado, sem poder dormir lá fora porque vocês não deixam. Estou sendo um peso agora? Me desculpem se estou doente. Fico pensando na minha casa, na casa que vocês tinham, tudo de bom que deixamos pra trás, por um certo orgulho, talvez. Não sei. Pode parecer delírio, mas eu estou querendo voltar mais cedo, sair daqui agora, levantar e ir embora.
(Pai tenta levantar, mas não consegue. Tosse muito)
Diego: Fique mais um pouco deitado e descanse. Calma. Depois a gente vê isso.
Pai: Em La Paz, pelo menos, há uma paz que eu não consigo encontrar aqui. Me sinto sozinho como jamais estive. Eu sei que fiz o errado, mas eu não consigo encontrar o certo. Quero me perdoar em vocês e me perdoar em mim. Será que consigo? Será que conseguimos sair juntos desse buraco? Eu pensei que me surpreenderia em Pradópolis. Eu nunca imaginei que ia acabar assim.
Diego: (Vai até a janela) E este azul? O céu daqui é lindo. Este azul parece que vai te dar dias abertos sempre. As vezes até parece um sonho.

(Música)

Ay, este azul
Que les quiero contar como fue
Por momentos se queda en mi piel
Ilustrándome el paisaje aquel.
Ay, este azul
Golondrina que vuelve otra vez
Musicando mi zaguán de ayer
A esperarme de barco en la sed.

(Silêncio. Um policial e uma mulher extremamente bem vestida entram no pequeno cômodo que abriga os bolivianos)

Mulher: Veja. Parece que estão aqui faz tempo. 

FIM

Lucas Arantes/Jornalista e Escritor


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