O dia em que nem o padre escapou de ser preso


Aldo Vannucchi passou noite na cadeia ao lado do vice-prefeito e de vereador


Giuliano Bonamim 
giuliano.bonamim@jcruzeiro.com.br
 

Aldo Vannucchi jantava com a sua mãe, na residência situada na rua Professor Toledo, região central de Sorocaba. Vestia batina, pois havia acabado de celebrar a missa de domingo na paróquia da Vila Assis. A aparente tranquilidade daquela noite de 5 de abril de 1964 foi quebrada com a visita de dois policiais. Ambos tinham uma tarefa: prender o padre. 

O delegado regional de Sorocaba, Francisco Severino Duarte, queria ter uma conversa com Vannucchi. O padre acatou a ordem, mas se negou a subir na viatura policial. Pegou uma Bíblia, ajeitou a batina e, no comando do seu Fusca, seguiu rumo ao prédio da delegacia situado na avenida General Carneiro. 

Duarte foi direto ao ponto. Disse ter recebido um telegrama de São Paulo com a ordem de prender Aldo Vannucchi, o vice-prefeito Agrário Gilson Antunes Teixeira e o vereador Antônio Santa"Anna Marcondes Guimarães. O motivo alegado era que o nome do padre aparecia nas atas do Partido Comunista Brasileiro (PC do B) de Sorocaba. 

Vannucchi tentou um diálogo com o delegado. "Doutor, eu garanto que o nome do Papa João 23 está lá. Se o meu estiver é porque eu escrevo em artigos de jornal e falo de forma insistente no rádio, em reuniões e nos movimentos de massa nos direitos dos trabalhadores. Tudo isso a partir das ideias de João 23, na doutrina social da Igreja." 

O chefe da polícia não mudou o seu posicionamento, cumpriu as ordens de São Paulo e ainda perguntou ao padre se gostaria de permanecer detido no quartel ¿ onde teria mais conforto. Vannucchi decidiu ficar junto com o vice-prefeito e o vereador, em condições de igualdade, em uma cela na Cadeia Pública de Sorocaba, construída nos fundos da delegacia. 

Os três passaram a noite praticamente acordados, cada um sobre um colchão em contato direto com o piso. "Foi uma noite maravilhosa. Ficamos conversando", comenta Vannucchi. 

Na manhã seguinte, por volta das 9h, Vannucchi ouviu uma voz vinda do corredor externo da cadeia. "Padre Aldo, o senhor vai sair logo!" Uma hora depois, ele deixou a cela. A libertação ocorreu graças à ação do alto escalão da Igreja Católica, que fez o pedido de soltura diretamente ao secretário estadual de Segurança Pública do Estado de São Paulo. 

O padre retornou ao Seminário Arquidiocesano São Carlos Borromeu e foi recebido pelo bispo Dom José Carlos de Aguirre, no alto dos seus 83 anos. Ambos se abraçaram e choraram, sem emitirem qualquer palavra. 

A prisão ocorrida cinco dias depois do golpe de 1964 nunca foi esquecida por Vannucchi. Muito menos os seus ideais democráticos. 

Militância de Vannucchi em prol dos trabalhadores contrariou regime

ARQUIVO JCS
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Aldo Vannucchi atuou em várias paróquias da cidade e de Votorantim, como nesta foto. Mas sua última missa como padre aconteceu fora do País, em 1º de maio de 1974

O rádio de pilha estava ligado sobre uma mesa na sede da Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Paulo, na avenida Higienópolis. As notícias eram ouvidas por 12 bispos presentes no encontro do episcopado paulista. Em um determinado momento, o arcebispo paulistano Dom Agnelo Cardeal Rossi fez uma pausa: "Meus irmãos, parece que o momento é gravíssimo". O então padre Aldo Vannucchi, na função de assessor da igreja, deixou a reunião no fim da tarde e retornou preocupado a Sorocaba. Quando a noite chegou naquela terça-feira, 31 de março de 1964, veio o golpe militar.

Vannucchi sabia que, a partir daquele momento, seria ainda mais visado por ser um conhecido defensor da "dignidade do trabalho e do trabalhador". Naquela época, Sorocaba tinha aproximadamente 150 mil habitantes. Era dominada, no setor industrial, por duas grandes companhias: o Grupo Votorantim e a Companhia Nacional de Estamparia (Cianê).

A Estrada de Ferro Sorocabana também exercia uma forte influência na economia do município. Os ferroviários formavam um grupo importante na cidade, eram bem pagos, assim como os funcionários do Banco do Brasil.

A indústria têxtil tinha uma maior população de operários. Ao mesmo tempo, era a que sofria mais problemas trabalhistas.

Diante desse quadro, Sorocaba era profundamente e quase exclusivamente industrial. As faculdades estavam apenas no começo. A de Medicina havia sido inaugurada em 1950, a de Filosofia em 54 e a de Direito em 57. "Então, nesse aspecto de pessoal apto a opinar a favor ou contra o golpe de 64, merece muita atenção o grupo operário, os ferroviários e os grupos de jovens dessas faculdades. Além disso, a atuação da igreja católica, na época, era muito mais do que hoje preponderante", comenta Vannucchi. 

Dentro da igreja havia alguns movimentos mais conscientes, como a Juventude Operária Católica (JOC), a Juventude Universitária Católica (JUC) e também o Círculo Operário Cristão. "Essas entidades, evidentemente, ofereciam uma massa crítica mais capaz de um lado se assustar com o golpe e, de outro, repensar a própria atividade para estudar como entrar em uma fase de resistência ao regime autoritário", relata.

Antes do golpe, Vannucchi costumava manifestar as suas opiniões e ideologias em um programa diário na rádio Cacique, que entrava ao ar às 18h com cinco minutos de duração. "Eu aproveitava a motivação religiosa para dizer uma palavra a partir do evangelho, mas imediatamente ligando à realidade social do país e de Sorocaba. Evidentemente, isso malhava contra problemas trabalhistas reais na cidade", conta.

O padre também era diretor da Faculdade de Filosofia, curso com aproximadamente 250 estudantes matriculados. Tinha acesso aos universitários de Direito e da Medicina graças ao vínculo com a Juventude Universitária Católica (JUC). Escrevia no jornal Folha Popular, um diário católico, morava e lecionava no Seminário Diocesano de Sorocaba e atuava em várias paróquias da cidade. "Eu tinha um auditório excepcional!", conta.

O posicionamento de Vannucchi escancarava a realidade social do país e de Sorocaba. Alguns dos alvos eram as três fábricas da Companhia Nacional de Estamparia: a Santo Antônio (hoje terminal de ônibus), a Santa Rosália (hoje hipermercado) e outra situada na avenida São Paulo. "Especialmente em Santa Rosália, apesar do nome da santa, era lá dentro que se praticavam as injustiças maiores. Por exemplo, pelo fato de naquele tempo a Cianê estar em alta, exportando para o mundo, os trabalhadores eram obrigados a trabalhar sábado e domingo, sem ir para casa, em uma violência inaceitável", conta.

Vannucchi lembra que as lutas a favor dos trabalhadores eram enfatizadas no dia 1º de maio. Um dos comícios, ocorrido em 1963, antes do golpe militar, ocorreu em frente à pequena cadeia existente na esquina da avenida Pereira da Silva com a rua São Francisco ¿ onde hoje funciona uma sorveteria e antigo território controlado pela estamparia. "Lá eram levados não só bêbados, mas qualquer outro que criasse problema de alguma forma social ou política era fechado lá dentro", diz.

O grupo comandado por Vannucchi permaneceu em frente à pequena cadeia em cima de um caminhão. O som dos discursos era potencializado com a ajuda de um alto-falante. "Tinha dois motociclistas, que passavam com o motor alto, para que o povo não nos ouvisse. Em um determinado momento, um bêbado se tomou de amores por mim e começou a gritar: "Deixa o padre falar!" Daí, alguém da polícia da estamparia foi para cima do bêbado, gente nossa foi em cima da polícia e acabou o comício. Falo isso para mostrar como os ânimos estavam", ressalta.

Mudanças

Diante do novo quadro político do País, Vannucchi relembra que o clima ficou perigoso para todos que eram contra a ditadura. "A gente continuava a fazer reuniões com muito cuidado, bem escondidas, com pouca gente. O policiamento aumentou nas ruas e muita gente foi presa, o que foi a parte mais terrível", conta. "Eu fui um privilegiado, por ter ficado pouco tempo detido, mas eu sei de colegas líderes que foram acordados de noite, de madrugada, em Sorocaba, com os soldados entrando de metralhadora no quarto. Eu voltei a falar no rádio, mas a partir daí eu fiquei mais seguido e perseguido do que nunca."

A pressão foi tanta que Vannucchi decidiu viver duas vezes em auto exílio. A primeira ocorreu em 1968. O padre era diretor da Faculdade de Filosofia, que oferecia curso gratuito graças a um convênio com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Em um determinado momento, a verba foi cortada e a instituição de ensino ficou cerca de quatro meses sem pagar os funcionários. "Soube que o governador Ademar de Barros dizia que "enquanto aquele padreco comunista for diretor, eu não vou soltar verba". Quando eu descobri isso, eu falei para o Dom Aguirre que iria para Roma fazer mestrado em Filosofia", conta.

Dois anos depois, Vannucchi retornou ao Brasil. A perseguição continuava. Prova disso são as 108 folhas que citam as atividades do padre, elaboradas pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) e atualmente armazenadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo ¿ vinculado à Casa Civil.

O segundo exílio de Vannucchi aconteceu após a morte de seu sobrinho, o estudante Alexandre Vannucchi Leme, ocorrida em 17 de março de 1973 sob a custódia do Estado e por motivação exclusivamente política. "Foi a coisa mais trágica da minha vida. Ele era o filho que eu não tinha naquela época", relata.

Vannucchi foi morar em Genebra, na Suíça. "Fui porque passei por uma decepção com a vida eclesial, pela perseguição política permanente e tive uma crise existencial", diz. Rezou a sua última missa em 1º de maio de 1974, deixou de ser padre e no ano seguinte retornou ao Brasil.

Ditadura foi mais que militar

Os 21 anos de repressão levaram Aldo Vannucchi a uma constatação. Para ele, não houve ditadura militar, mas sim ditadura, pois o envolvimento dos civis também foi importante para a instalação do estado autoritário. 

Segundo Vannucchi, os militares tiveram um papel decisivo. "Eles se sentiram dentro da lógica e da ideologia das Forças Armadas. Eles se sentiram chamados quase que obrigatoriamente para salvar o País dentro de uma emergência, tudo dentro de uma visão ideológica no pensamento deles totalmente justo. O País, segundo eles, estava à beira do comunismo", comenta.

Na opinião de Vannucchi, os civis também tiveram uma atitude tão importante quanto a dos militares. "Basta lembrar quatro nomes: os governadores Adhemar de Barros, em São Paulo, Magalhães Pinto, em Minas Gerais, Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro e Antônio Carlos Magalhães, na Bahia. Além deles, inúmeros empresários que se sentiam perigosamente à margem do comunismo, dos grandes latifundiários, dos grandes coronéis do nordeste. Toda essa sociedade civil tem de ser computada como agente, ator ou atriz da ditadura também."

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