Por Joana Salém Vasconcelos*
A escola que inspirou o sistema brasileiro de educação pública surgiu na
Revolução Francesa, como parte essencial do projeto iluminista. Por
meio dela, os revolucionários do século XVIII pretendiam combater os
privilégios de nascimento de uma aristocracia que era educada por
professores exclusivos dentro de seus castelos. A nobreza contratava
filósofos, matemáticos, teólogos, músicos e astrofísicos para ensinar
seus filhos dentro de suas propriedades, protegidos por altas muralhas,
bem longe da realidade desagradável da “gente comum”. A partir de 1789, a
rebelião popular contra os privilégios aristocráticos propagou a utopia
de uma sociedade de cidadãos livres e iguais. Retirar a educação do
âmbito privado familiar e torna-la uma responsabilidade do Estado era
condição necessária para a formação desta nova cidadania, desenvolvendo
as bases sociais da República.
No século XIX, a escola pública tornou-se um espaço
social totalmente novo, onde os filhos de comerciantes, camponeses,
industriais e operários se encontrariam para tornarem-se, acima de tudo,
integrantes de uma mesma nação. Por causa disso, no princípio da utopia
iluminista, a homogeneidade era um valor positivo, que contrapunha os
privilégios (diferenças de nascimento) à cidadania (igualdade de
oportunidades). Mas o iluminismo sempre foi ambivalente. A criação de um
repertório cultural comum exigia a imposição de padrões sobre o certo e
o errado, que deveriam ser aceitos como pressupostos da nova sociedade.
Então a escola pública moderna nasceu totalmente atravessada por duas
forças opostas e sobrepostas. Por um lado, a escola garantia o direito
de todos ao conhecimento; por outro, representava um poder
discricionário que determinava qual conhecimento era válido e qual não
era.
A organização espacial de uma sala de aula típica
representa bem esta duplicidade: carteiras idênticas, simetricamente
dispostas na forma de plano cartesiano, todas com a vista voltada para
um mesmo ângulo. Igualdade e hierarquia; direito ao conhecimento e
obediência disciplinada; emancipação circunscrita pelo autoritarismo.
A escola pública brasileira vive hoje um dilema
herdeiro deste, agravado pela força da cultura escravista. Temos leis
que garantem o direito de todos ao conhecimento através da escola. Porém
nosso sistema educacional público vive um estado de exceção permanente
que nos acostumamos, ingenuamente, a chamar de “crise”. Nascida como
espaço de encontro entre diferentes classes sociais, no Brasil a escola
pública tornou-se o lugar de socialização dos mais pobres e dos mais
negros.
As classes médias e altas, predominantemente brancas, retiram seus filhos da realidade desagradável da gente comum
e os protegem dentro das escolas particulares, onde provavelmente
encontrarão maridos e esposas. Isso porque, no Brasil, a escola
iluminista é uma “ideia fora do lugar”, como analisou Roberto Schwartz a
respeito do liberalismo. Ou seja, o direito à escola está nas leis e
foi incorporado no discurso do senso comum, mas a distância social entre
sistema público e particular remete aos tempos dos privilégios
aristocráticos.
Esta política de segregação educacional gerou um
paradoxo, contra a qual hoje se revoltam os defensores do projeto
autointitulado “Escola Sem Partido”. Por ser relegada ao papel de
depósito de crianças de baixa renda, a escola pública se tornou também
um espaço implacável de liberdade, que alguns chamam de descontrole ou
indisciplina. Após a redemocratização, essa liberdade alcançou também o
trabalho docente, como uma espécie de efeito colateral do desprezo que
os poderes públicos demonstram pela educação dos mais pobres.
Buscando retomar o controle do currículo, em 2008, o
governo de São Paulo iniciou a política de bonificação para os
professores das escolas com melhor desempenho no SARESP (Sistema de
Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo). Isso fez com
que o salário dos professores fosse atrelado à nota de seus alunos em
uma prova elaborada pelo próprio governo. A prova mede parâmetros
curriculares homogêneos para todas as escolas do Estado, desconsiderando
suas particularidades sociais, culturais e regionais. Desde então, os
professores de São Paulo estão vendo sua liberdade de ensinar enquadrada
por um currículo imposto, condicionado por uma prova cujos conteúdos
sequer foram debatidos com eles. Em 2016, a mesma diretriz de
bonificação docente está sendo anunciada em âmbito nacional pelo governo
golpista de Michel Temer, dentro de um documento intitulado “Travessia
Social”, formulado pela fundação Ulysses Guimarães do PMDB.
O grupo Escola Sem Partido
também busca promover o autoritarismo curricular, porém por meio de uma
tática muito rudimentar. Formado por partidos e pessoas da “nova
direita” brasileira, não possuem entre suas lideranças profissionais da
Educação, mas da área Jurídica, o que não impediu que seu Projeto de Lei
estivesse repleto de contradições. Por exemplo, em seu primeiro artigo,
o PL 867/2015 do deputado federal Izalci (PSDB/DF) ou o PL 193/2016 do
Senador Magno Malta (PR/ES) – dois entre vários PLs iguais espalhados
pelo país – estabelece que a educação nacional respeitará o princípio da
“neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Disso,
portanto, se poderia supor que os professores da escola pública, como
funcionários de um Estado “neutro”, ensinariam a seus alunos sobre
diferentes formas religiosas e variadas correntes de pensamento
político, todos apresentados com uma mesma ênfase. Porém, mais adiante o
projeto afirma “o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação
moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, alegando que
“se cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em matéria de
moral, nem o governo, nem a escola, nem os professores têm o direito de
usar a sala de aula para tratar de conteúdos morais que não tenham sido
previamente aprovados pelos pais dos alunos”.
Ora, o que significa “neutralidade” para os
partidários da Escola Sem Partido? Para eles, “neutralidade” é sinônimo
do enquadramento do professor aos pensamentos e crenças dos pais dos
alunos. Mas como isso seria possível? O que ocorreria, por exemplo, em
uma sala de aula com alunos de famílias evangélicas, umbandistas,
espíritas, judias, islâmicas, candomblecistas e ateias? Como o professor
deveria abordar o tema da “diversidade religiosa” representada pelos
próprios alunos, se um grupo de pais evangélicos considera que as
religiões afro-brasileiras são satanistas? Fica evidente que os
formuladores do PL não compreendem a realidade diversificada das escolas
públicas e seu componente emancipatório, talvez porque estejam
excessivamente acostumados com a homogeneidade ideológica e étnica de
algumas escolas particulares da classe média.
De qual componente emancipatório falamos? Se os
adultos brasileiros reproduzem práticas de intolerância, violência e
preconceito, na escola os jovens terão a oportunidade de desconstruir e
reconstruir valores familiares a todo tempo. Na escola, uma diversidade
de culturas e ideologias familiares se encontram por intermédio dos seus
filhos, o que favorece enormemente a formação de uma sociedade
democrática. Cabe aos educadores, sim, promover a diversidade como um
valor intrínseco à democracia e não reproduzir particularismos
familiares.
Além disso, o que é mais grave, o PL abre o precedente da criminalização de professores
que incluam em suas aulas debates sobre a religiosidade
afro-brasileira, sobre diversidade de gêneros ou sobre pensamento
marxista. A proposta de criminalização por “assédio ideológico” ou
“doutrinação marxista” é muito semelhante ao que as ditaduras do Cone
Sul chamaram de “terrorismo intelectual”. Nos anos 1960 e 1970, milhares
de educadores latino-americanos foram presos e torturados por divulgar
as ideias de Paulo Freire, por exemplo. As palavras mudaram, mas a
essência é a mesma. Em ambos os casos, trata-se de uma tentativa de
disfarçar a incompatibilidade de uma escola tecnocrática e conservadora
com aquilo que Paulo Freire definiu como “educação como prática da
liberdade”. Com isso, pretendem fortalecer o viés autoritário da
instituição escolar e blindar os jovens do contato com o contraditório,
isto é, com a teoria social crítica e com o respeito à diversidade.
Os estudantes brasileiros têm e terão professores
socialistas, liberais, socialdemocratas e conservadores, pois os
professores inexoravelmente têm seus posicionamentos políticos. Mas o
grupo Escola Sem Partido trata o estudante como uma tábula rasa, que
somente reproduz aquilo que escuta. Subestimam radicalmente a capacidade
dos alunos pensarem por conta própria e desenvolverem raciocínios
autônomos a partir de suas experiências na escola, na rua e na família.
Ao contrário, a educação como prática de liberdade de Paulo
Freire, tão criticado por ser um ideólogo da “doutrinação marxista”,
valoriza tremendamente a necessidade dos jovens e adultos desenvolverem
capacidades autônomas de leitura do mundo a partir do contato com a
complexidade dos conflitos políticos.
O grupo Escola Sem Partido, enfim, se utiliza de um
arsenal de argumentos supostamente iluministas para propor um regresso
da educação para as tradições familiares, um retrocesso para o período
anterior à Revolução Francesa. São obscurantistas e se apossam daquilo
que o iluminismo também tem de autoritário para respaldar seus projetos.
Em um país diversificado, política e culturalmente efervescente como o
Brasil, podemos ter certeza de que a tarefa deles não será fácil.
*Joana Salém Vasconcelos é Historiadora,
Mestra em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp, faz Doutorado em
História Econômica na USP. Atua na Rede Emancipa de Educação Popular e
trabalha no Instituto Vladimir Herzog.
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