Fabiano Stoiev: OCUPA BRASÍLIA, um relato.


OCUPABRASÍLIA, um relato.
(por Fabiano Stoiev)
1.Descemos do ônibus sobre um viaduto. Às nossas costas, a esplanada dos ministérios. Eram 11 horas. Com bandeira, megafone e alguma euforia, seguimos em direção ao estadio Mané Garrincha. Quando vimos um caminhão da Força Sindical descendo a avenida. O ato começava bem antes do previsto. Alguém levantou a hipótese de desentendimento entre as centrais. Mais tarde, um funcionário da APP me disse que adiantar a manifestação foi uma estratégia para enganar a repressão. Não sei. Mas do caminhão já avisavam que mascarados não entrariam no ato, que não eram bem vindos. Como eu, alguns meninos com roupas pretas subiam em direção ao estádio. Máscaras nos atos, às vezes, é coisa circunstancial. Em caso de conflito, muitos cobrem o rosto para se protegerem do gás.
2.A manifestação era gigantesca. Mesmo tendo participado de várias, essa era realmente impressionante. A Força Sindical puxou o início do ato, seguida pela CSB. Outras centrais entravam na sequência. O sol do cerrado reforçava o colorido das camisetas, dos balões, das faixas. Com certeza a marcha estrapolava as 100 mil pessoas. Já próximo do estádio, e encontrei com militantes da Liberdade e Luta, que estavam se concentrando para formar uma coluna. Me juntei a eles. Enquanto aguardávamos um povo de São Paulo, observava a marcha. De onde tanta gente?
3. Entramos no ato com nossas faixas enormes. Atrás, um grupo animado do MTST, e mais milhares de pessoas. A descida em direção a esplanada demorava, mas era muito colorida e animada pelos cantos dos coletivos, que reverberavam nos viadutos. Minas trans fazendo topless. Um grupo indígena com seu canto característico surgiu de repente. Assim que cruzamos a rodoviária e botamos os pés na Esplanada, vi alguns montes de canos de PVC no gramado. Uma linha de revista da PM tinha sido montada ali. Estavam impedido a passagem de bandeiras com mastro, segundo um acordo entre a polícia e as centrais sindicais. Ali, como me disseram depois, ocorreu o primeiro confronto. Agentes penitenciários, policiais civis e uma frente muito bem organizada pelo PSTU, com escudos compondo um FORA TEMER, forçaram as linhas policiais, que tiveram que recuar sob pressão da marcha. Seguranças dos ministérios também tomaram parte do conflito (a suspeita de disparos caem sobre eles). Alguns caminhões de som, já estacionados, nos informavam que havia um confronto na linha de frente do ato, e recomendavam nos concentrarmos no gramado, sem avançar mais. Mas ainda havia muitas pessoas descendo em direção à esplanada e estávamos muito distante da linha de frente. Ao mesmo tempo, centenas já retornavam, incomodadas por uma nuvem de gás lacrimogêneo. Resolvemos avançar um pouco mais, com a multidão que continuava chegando. Botei meu capacete e coloquei minha mochila para a frente do meu corpo, para proteger de balas de borracha. Percebi que alguns jovens acharam engraçado aquele tiozão. E era engraçado mesmo. Mas é eficiente. De repente, os olhos lacrimejam, a garganta seca e fica difícil respirar. Ainda distantes da linha de frente, já experimentavamos os efeitos do gás. Com uma bateria e uma composição com muitos secundaristas, não era aconselhável avançarmos mais. Havia levado uma garrafa de leite de magnésia porque, dizem, combate aqueles efeitos. É verdade. O alívio é imediato. Depois de todos passarem o produto e estarem a uma distância segura, resolvi avançar com o João, camarada fotógrafo, até a linha de frente.
4. À direita e à esquerda, pelotões da choque trancavam o avanço pelas avenidas. No centro do gramado, a cavalaria. Atrás deles, uma cerca e mais uma linha de policiais. Um caminhão de som estava em uma avenida transversal e procurava dar alguma orientação para os manifestantes. Na direita, em confronto com a choque daquele lado, um grupo de jovens autonomistas, escondidos atrás de tapumes. Rojões eram disparados contra a polícia. Um banheiro químico queimava no gramado. E uma fumaça escura subia junto a um dos prédios ministeriais. Nas minhas costas, a frente formada pelo PSTU aguardava o momento de entrar em ação. A linha de frente dos manifestantes era atacada com tiros e bombas, mas não cedia, alimentada ainda por milhares de manifestantes que não paravam de chegar. Jovens corriam em busca de pedras, quebrando o meio fio e até mesmo o asfalto, com pequenas marretas. Do caminhão, avisavam sobre um ferido e acusavam a polícia pelo uso de munição letal.
5. A dificuldade de respirar era imensa. Os efeitos do gás exigiam um recuo. Voltei para a coluna da Liberdade e Luta, com suas bandeiras para o alto. Tentávamos avançar um pouco mais, mas de tempos em tempos uma maré humana corria em sentido contrário ao nosso. Sob nossa orientação, a meninada corajosa mantinha a posição e não se desesperava. Mas a cada avanço, pouco tempo depois éramos obrigados a recuar ainda mais, devido a intensificação dos ataques. Resolvi retornar a linha de frente uma última vez.
6. Lá a situação havia se alterado, depois de duas horas de ataques. A resistência estava mais rarefeita. O caminhão de som abandonara sua posição e estava numa das pistas laterais. A tropa se movimentava e era nitido que preparava um avanço. Se a cavalaria viesse pelo gramado, teria que correr em direção aos prédios, pensava. Os autonomistas também haviam se deslocado: agora estavam na pista da esquerda. As bombas, disparadas por morteiros, explodiam no ar e liberavam as cápsulas de gás lacrimogêneo. Bendito capacete. Uma cápsula caiu próximo de mim e chutei ela, para longe, com um sapato de bico de aço. Outro equipamento que recomendo para os manifestantes. Mais outra cápsula. Com um copo descartável cobri ela e coloquei o pé em cima. Com o calor, o copo derreteu, mas parece que a fonte de fumaça se esgotou mais rápido por isso (um truque aprendido em 29 de abril). Do meu lado, um mascarado pisou em uma cápsula para enterra-la no gramado. Também pareceu funcionar bem, desde que o calçado suporte o calor do artefato. Não recomendo pegar esses artefatos na mão, nem com luvas. Há o risco de ainda não ter explodido. Dizem que foi isso que arrebentou os dedos de um dos manifestantes.
7. Na minha esquerda, os autonomistas se movimentam com seus tapumes, tentando evitar à pedradas o avanço por aquela linha. Helicópteros fazem vôos razantes para amedrontar e espalhar ainda mais o gás. A tropa se movimenta por trás dos ministérios e entre os prédios aparecem grupos de choque, empurrando quem ainda resistia em direção ao gramado. Hora de recuar. Um menino autonomista se escondeu mal atrás de um tapume e tomou um tiro de borracha acima do cotovelo. Com dor, não conseguia se movimentar e ficou exposto a mais tiros. Corro para ajudar a tirá-lo daquela posição. Conforme recuamos, a polícia avança em nosso encalço. Fogueiras com lixo e todo tipo de material são colocadas nas pistas para atrasá-la. No gramado, um grupo de meninas se solidariza no infortúnio dos efeitos de gás. Ofereço o leite de magnésio. Não será o primeiro grupo de valentes garotas que vou encontrar em situação parecida. Vamos prestando socorro aos nossos últimos feridos. As sirenes dos veículos de polícia, no entanto, nos avisam que não temos muito tempo.
8. No Conjunto Nacional, reencontro a coluna da Liberdade e Luta, acuada no viaduto. Para proteger as lojas de um shopping, a polícia monta uma linha do outro lado da rua e atira gás contra os manifestantes, que tem seu caminho cortado por essa ação. Uma menina de nosso grupo se desespera. É comum nessas situações as pessoas se apavorarem e terem crises nervosas. Procuramos acalma-la. Contornar seria muito trabalhoso. Melhor passar pelo viaduto, apesar do risco de ficarmos encurralados pela polícia. Vamos avançando quase que em fila indiana, pedindo passagem para a polícia. Por vezes, algum manifestante, já fora do perigo, ameaça jogar uma pedra. Brigávamos com eles. Não era hora e colocaria as pessoas que estavam na passagem em risco. Mal nossa coluna passou e a polícia lançou uma lata de gás lacrimogêneo. Foi parar no pé de um vendedor ambulante, que virou sua caixa térmica com garrafas de água, assustado. Corri para ajudá-lo. Estava trastornado. Resolveu ir discutir com os policiais, do outro lado da rua. Até um deles erguer sua escopeta no peito do trabalhador. Fui retirá-lo de lá, para evitar o pior. Ajudei a levar a caixa térmica até ele ficar fora de perigo.
9. Na altura do estádio Mané Garrincha, tudo estava mais tranquilo. Por vezes, um grupo de jovens depredava um ponto de ônibus ou uma placa de sinalização. Duas senhoras que participavam da marcha chamavam sua atenção. No entanto, um grupo ainda maior de manifestantes os incentivavam: quebra, quebra tudo! Depois da barbárie daquele dia, a disposição dos marchantes havia mudado. A revolta contra o governo Temer era ainda maior.

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