Reitoria da USP põe em risco o Hospital Universitário, prejudicando atendimento de 600 mil pessoas, denuncia associação

Cartas de Minas

28 de outubro de 2017 às 20h00

viomundo
 O reitor Zago (à direia, calvo e de óculos) assumiu em 2014 com a proposta de ampliar o diálogo. Fez exatamente o contrário. Conseguiu, assim, a proeza de juntar toda a comunidade uspiana em defesa do HU. No topo, da esquerda para a direita: Givanildo dos Santos (morador da Favela São Remo),  Alice Baer (integrante do Centro Acadêmico “Oswaldo Cruz” da Faculdade de Medicina da USP) e professora  Primavera Borelli (diretora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas). À esquerda, de avental branco, Gerson  Salvador (médico do HU e integrante da diretoria Simesp). Manifestações de alunos, professores, profissionais e usuários contra o desmonte. Fotos: Daniel Garcia, com exceção de duas — a da fachada do HU e a do reitor
Comportamento irresponsável da Reitoria compromete o Hospital Universitário
A política de corte de gastos da Reitoria, via Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), corte de plantões e outras medidas, reduziu bruscamente o corpo de profissionais de saúde do HU, abalando a formação dos alunos de diversos cursos da USP e causando graves prejuízos ao atendimento médico a 600 mil habitantes da região do Butantã. O reitor tenta livrar-se do hospital, fingindo ignorar seu importante papel formativo e de extensão universitária. Os alunos mobilizam-se em defesa do HU
“A situação do HU? Está uma agressividade para nós”, afirma Givanildo dos Santos, morador da Favela São Remo, situada ao lado da Cidade Universitária do Butantã, e funcionário da USP.
De acordo com o Portal da Transparência da USP, entre setembro de 2014 e abril de 2017 o Hospital Universitário (HU) perdeu 367 trabalhadores, entre médicos e enfermeiros.
Na sua maioria por conta das duas edições do Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV 1 e 2) implementadas pela gestão do reitor M.A. Zago. Em apenas três anos o hospital se viu com 20% a menos de seus servidores.
Referência na zona oeste da capital paulista, principalmente para a população da região do Butantã, onde vivem mais de 600 mil pessoas, o HU enfrenta um verdadeiro desmonte.
De 2014 para cá, 56 leitos do hospital (25% do total) tiveram de ser fechados. Entre eles, oito eram da Unidade de Terapia Intensiva (UTI), que está agora com 60% da estrutura que tinha antes. Em 2013, o hospital realizou 138 mil atendimentos ambulatoriais e 11,8 mil internações. Em 2015, esses números caíram para 96 mil atendimentos e 9,3 mil internações.
“Quando se trata de saúde, toda a população da São Remo e do entorno ficava despreocupada por estar próxima de um dos melhores hospitais da cidade. Todo mundo da favela tinha certeza, por exemplo, que teria seu filho no HU. Hoje não. Agora quem não consegue ser atendido no HU tem que ir para o Pronto Socorro (PS) da Raposo Tavares ou para o Hospital Sarah que é praticamente só maternidade. Acaba tendo que atravessar São Paulo, ir para o Jabaquara, Pirituba, às vezes Tatuapé”, relata Givanildo, que conclui: “O HU é uma necessidade para a comunidade da São Remo e para toda a população do entorno”.
M.A. Zago foi empossado em janeiro de 2014 com uma proposta de ampliar o diálogo dentro da USP. Em maio, já estava em curso uma greve geral.
“O reitor chegou com uma visão de que a universidade é grande demais, que precisa reduzir seu tamanho e focar em ensino e pesquisa. E algumas unidades ele entende que não fazem parte dessa missão. Entre elas os hospitais universitários, os museus, as escolas de aplicação, as creches”, sintetiza Gerson Salvador, médico do HU e integrante da diretoria do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp).
Ainda no ano em que assumiu, em entrevista à revista IstoÉ, Zago (que, aliás, é médico) deixa clara sua posição: “Por que a USP gastaria os seus recursos com fraldas, antibiótico e soro? A função da universidade é ensino e pesquisa”.
Para Salvador, essa visão de universidade é “tacanha” e de “Estado mínimo”: “A universidade tem que buscar meios para estar cada vez mais próxima da sociedade, não o contrário”.
Em agosto, quando a greve já se arrastava por três meses, a Reitoria anunciou um pacote de medidas de austeridade para conter a crise financeira da USP, alegando que a folha de pagamento consome 105% do orçamento. Entre as propostas estava a desvinculação dos hospitais universitários da USP (HU e HRAC), passando-os à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.
A mobilização contra a desvinculação se alastrou rapidamente. Aderiram à greve funcionários e médicos do HU, que não paralisavam suas atividades havia 19 e 25 anos respectivamente.
Entidades da USP, o Simesp e movimentos sociais como o Fórum Popular de Saúde apoiaram a causa. O governo estadual, por sua vez, recusou-se a assumir os hospitais da USP.
“Tem alguém que quer repassar o HU, mas o outro não quer. Não tem discussão”, afirmou ao portal IG, à época, o secretário da Saúde, David Uip.
Uma comissão ad hoc criada pela Reitoria para estudar a situação do HU (Portaria GR 965, de 11 de setembro de 2014), presidida pelo diretor da Faculdade de Medicina, professor José Otávio Auler Junior, concluiu, após meses de trabalho, que o hospital deve permanecer vinculado à universidade.
“O reitor nunca deu ciência do nosso relatório para a comunidade universitária”, denuncia Salvador, que integrou a comissão como representante dos funcionários do HU. “Enquanto essa comissão trabalhava, o PIDV atingiu o hospital em cheio”.
Dos 1.433 servidores que aderiram à primeira rodada das demissões voluntárias, 213 eram do HU (a maioria da enfermagem e 18 médicos).
“A adesão foi grande muito por conta de as pessoas estarem desanimadas, entendendo que o hospital não era bem quisto pela administração da universidade”, avalia o médico, que já exerceu a função de vice-diretor clínico do HU, eleito pelos colegas.
Como resultado do déficit de profissionais, as escalas passaram a não fechar e diversos serviços do hospital paulatinamente foram fechados ou reduzidos.
Além da diminuição de 25% dos leitos de internação e do fechamento da Unidade de Terapia Semi-Intensiva, o número de salas no Centro Obstétrico e Cirúrgico caiu de 11 para oito. Os procedimentos cirúrgicos diminuíram em 25%.
Entre 2013 e 2015 os atendimentos urgentes de oftalmologia caíram 89% e de ginecologia, 39%. Sem pessoal, em 2016 o HU teve de fechar o atendimento noturno dos Prontos Socorros adulto e infantil.
Em 2015 o Conselho Regional de Medicina (Cremesp) investigou a situação do hospital, a pedido do Ministério Público (MPE-SP).
“Conforme relato dos médicos, entre outros entrevistados durante a vistoria, todos afirmaram a impossibilidade em manter o padrão anterior de qualidade, com situações de risco e sofrimento tais como a dificuldade de se conseguir analgesia intra-parto conforme relato do obstetra de plantão”, aponta o parecer.
Entre as conclusões do Cremesp está a crítica ao PIDV, “cujos critérios certamente não incluíram as necessidades de funcionamento do hospital”.
Sobrecarregados, diversos trabalhadores do hospital pediram demissão mesmo depois do PIDV. “Na equipe de que eu faço parte, que é clínica médica, cinco médicos pediram demissão nos últimos dois meses”, lamenta Salvador. Entre 2013 e 2017, de acordo com o Portal da Transparência da USP, o HU perdeu 38 médicos.
Procurado pela Revista Adusp, em junho de 2017, para comentar a situação do hospital, o professor Waldyr Jorge, superintendente do HU e pessoa de confiança de M.A. Zago, classificou o PIDV como “um remédio amargo, porém necessário”. “Tinha que ser feito e o reitor chamou para si esta responsabilidade, visando garantir os empregos, salários, o futuro da Universidade e sua autonomia”.
Opinião bem diferente da que emitiu em abril de 2015, quando declarou ao Informativo Adusp que o PIDV causou “perda de quadros importantes, altamente qualificados” e foi “um equívoco” (http://www.adusp.org.br/index.php/pidv/2259-para-waldyr-jorge-pidv-causou-perda-de-quadros-qualificados-e-foi-equivoco).
Há algo de irracional no comportamento da Reitoria. “A universidade fazia a gestão de todos os seus restaurantes. Já foram terceirizados vários, e isso tem impacto enorme. E há outros gastos que parasitam a vida da universidade”, opina M.A. Zago, em entrevista ao Valor Econômico, cuja jornalista imediatamente questiona: “Como o quê?”. “Um hospital universitário, por exemplo, chamado HU”, responde o médico e reitor.
Por esse “parasita” passam, por ano, 2.430 estudantes de áreas como medicina, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, enfermagem, nutrição, odontologia, psicologia, farmácia e saúde pública.
Os estudantes estão vivendo uma “redução do cenário de prática dos cursos da saúde, que é importantíssimo para a capacitação de qualquer profissional”, avisa Alice Baer, integrante do Centro Acadêmico “Oswaldo Cruz” (CAOC) da Faculdade de Medicina (FM).
“No caso da medicina, passamos por prática no HC [Hospital das Clínicas] e pontualmente em UBS [Unidade Básica de Saúde], mas o HU é muito importante por ser um hospital secundário onde a gente vê os casos mais prevalentes da população. Então perder o HU é perder a formação a respeito desses casos com os quais mais vamos lidar na vida profissional”.
A mais recente manifestação pública em defesa do hospital, em 19 de abril, foi organizada pelo movimento estudantil. Resultou de uma articulação entre o CAOC e outros centros acadêmicos: “Arnaldo Vieira de Carva­lho” (CAAVC), dos cursos de Fono­audiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional; de Fármacia e Bioquímica (CAFB); 31 de Outubro (de Enfermagem); XXV de Janeiro (de Odontologia). Participaram também o Diretório Central dos Estudantes (DCE-Livre) e o Fórum Popular de Saúde.
Sérgio Cruz, médico assistente do HU, argumenta que um hospital de ensino tem que cumprir um papel maior do que apenas a assistência: “É necessário que ele possua um ambiente acadêmico”.
A seu ver, essa condição é impossível em hospitais do SUS, que não têm estrutura de ensino e pesquisa. “O que ocorre é que os alunos e residentes são jogados nesses hospitais e passam a ser tratados como ‘mão de obra barata’, sem estrutura e sem orientadores pagos para ensiná-los e orientá-los”, opina, em artigo publicado no jornal Hora do Povo.
Para João Daré (ou Dayane), membro do Centro Acadêmico Arnaldo Vieira de Carvalho (CAAVC), que representa os alunos dos cursos de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da USP, “o ambiente de escola que o HU proporciona é diferente de qualquer outro hospital”.
“O supervisor tinha mais tempo de discutir os casos com os estudantes, estava mais próximo para guiar essa transição do teórico para o prático em um ambiente em que a integração multiprofissional realmente acontece”, descreve. “Agora essa integração está muito mais difícil de acontecer porque os profissionais estão sem tempo”, observa Dayane. “É algo que impacta na formação dos estudantes completamente, na saúde dos profissionais e no atendimento que está sendo oferecido”.  
Aproximadamente 80% da demanda do HU devem-se à falta de estrutura da rede de atenção primária e pequenas urgências, de acordo com o parecer do Cremesp.
O dado aponta, por um lado, a debilidade da rede do SUS, mas também a importância desse hospital para a região do Butantã. Há apenas uma unidade de emergência, o Pronto Socorro Municipal “Dr. Caetano Virgílio Neto”, para os cinco distritos da região: Raposo Tavares (que possui 54 favelas), Rio Pequeno, Vila Sônia, Morumbi e o próprio Butantã. “Precarizar o HU é precarizar, além da atenção secundária, também a atenção primária que ele cumpre na região oeste”, resume Alice Baer.
“A maioria dos trabalhadores de nível básico e nível técnico dessa universidade é morador da Favela São Remo, das favelas do Jaguaré, Vila Dalva e Rio Pequeno”, salienta Givanildo dos Santos.
“A São Remo surgiu por conta da necessidade da construção da USP. É a mão de obra barata. Não existe nenhuma unidade da USP que não tenha um trabalhador que mora na São Remo”, descreve Givanildo, que já presidiu diversas vezes a Associação de Moradores da favela.
“E aí os cortes de gastos dessa universidade que é pública limam os serviços fundamentais que ela oferece para essa mesma população pobre que a mantém e que ergueu e ergue os prédios dessa universidade”, expõe.
Ele dá um longo suspiro, antes de retomar a análise. “É muito difícil para a comunidade da São Remo viver a situação em que o HU está. Comunidade que é lutadora, que fez nascer essa universidade, que junto com os trabalhadores da USP pressionou pela abertura do hospital. Várias pessoas da favela lembram, contam como fizeram passeatas e mais passeatas para que se inaugurasse o HU”, relata.
“A gente não pode ignorar que o Brasil está mergulhado numa crise econômica e política. Essa diminuição de recursos tem impactado todo o setor público e a USP e o HU não saíram ilesos disso”, pondera o médico Gerson Salvador. “Essa crise ajuda em parte a explicar a situação da USP, mas em absoluto não a justifica. A principal justificativa é a própria visão política da Reitoria da USP”.
Visão política que vislumbra uma “USP do Futuro”. Assim foi batizado o projeto elaborado para a Reitoria pela McKinsey&Company (http://www.adusp.org.br/files/revistas/61/3.pdf).
Em uma apresentação das primeiras conclusões do projeto no Conselho Universitário, em 2016, o reitor, a partir da avaliação de que “há gasto excessivo com pessoal”, anunciou que entre as sugestões da McKinsey estão “implementar o plano de redução da jornada de trabalho”, “desenhar plano de desvinculação dos hospitais”, “negociar grandes contratos com terceirizadas”, expandir a demissão voluntária. Medidas que, obviamente, mantêm o HU como alvo de M.A. Zago.
A professora Primavera Borelli , diretora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF), lembra à Revista Adusp que a USP já passou por outros períodos de restrição orçamentária e, no entanto, em nenhum momento suas unidades foram desmontadas.
“O Hospital Universitário envolve atividades-fim e com essa concepção deve ser uma prioridade mantê-lo na estrutura universitária da mesma maneira que se preservam as demais unidades”, argumenta.
Entre alternativas de investimento para o hospital que se diferenciem de demissões e desvinculação, Primavera sugere “tratativas com o Estado para repasse de verbas e adequação da rede de atenção à saúde da região oeste com direcionamento dos atendimentos de baixa complexidade para UBS, UPA [Unidade de Pronto Atendimento] e AMAs [Atendimento Médico Ambulatorial]”.
Na opinião de Primavera, caso o HU seja retirado da estrutura de governança universitária, o campo de práticas para a formação dos profissionais da saúde estará perdido.
“Ilusão pensar que poderá ser substituído por outros, porque não há sequer outro com essa estrutura que atenda, indistintamente, as diferentes áreas de formação em saúde: interdisciplinaridade — integração e interdependência de cada profissão da saúde para o desenvolvimento das atividades-fim da Universidade — sem predomínio de uma disciplina sobre as outras, atendimento de média complexidade etc”, elenca.
As considerações da diretora da FCF convergem com o entendimento do professor emérito Marcello Marcondes Machado, da Medicina, que ao manifestar-se em agosto de 2014 assim definiu o hospital: “O HU pode ser considerado a unidade da Universidade de São Paulo mais amplamente universitária”.
A posição da FCF em defesa do hospital é histórica. Em maio de 2015, a Congregação da unidade divulgou “Carta Aberta aos Alunos, Docentes e Funcionários da USP”, na qual reconhece a “contribuição fundamental do HU na formação de profissionais competentes” e rejeita “qualquer medida que comprometa esta atuação”, recado contra a desvinculação pretendida pela Reitoria.
Nessa mesma linha, diga-se, foram as conclusões da comissão criada pelo próprio reitor, a ele apresentadas em 7 de julho de 2015 e jamais divulgadas pela Reitoria.
A primeira delas: “que o HU permaneça vinculado à USP”, clara derrota do projeto inicial de M.A. Zago, de desvincular imediatamente o hospital e transferir sua gestão à Secretaria da Saúde.
A comissão também defendeu que fossem garantidas as condições necessárias ao funcionamento do HU, “compatíveis com a qualidade da assistência, a segurança de pacientes e trabalhadores e a excelência do ensino”.
Como resistir à irresponsabilidade da gestão M.A. Zago-V. Agopyan?
“A mobilização contra a desvinculação do HU foi forte e a luta dos estudantes foi muito importante, embora não tenha sido completamente vitoriosa porque logo em seguida veio o PIDV”, narra Alice Baer. “A gente tem tentado fortalecer uma vez mais a mobilização, mas o cenário está difícil dado que a Reitoria não se mostra aberta ao diálogo, e os PIDVs impedem as contratações via USP no momento”.
Na troca de ideias com os funcionários do hospital, estes apontaram como possibilidade de reforçar o quadro de pessoal do HU o eventual comissionamento de funcionários da Prefeitura, hipótese que os estudantes não veem como ideal, “dado que eles não têm vínculo com a universidade e portanto não têm a função do ensino”, mas é o que, nesse momento, “parece viável para manter o hospital de portas abertas atendendo a população”.
Questionado a respeito das reivindicações por contratações de emergência no HU, o superintendente Waldyr Jorge tergiversou, afirmando que elas estão reservadas “ao campo político com pouco resultado efetivo, uma vez que a situação financeira que a USP, assim como o Brasil passa, não permite visualizar contratação em curto prazo além do impedimento legal de contratação diante do PIDV”.
Daqui para frente, acredita Gerson Salvador, os passos terão de ser construídos com a sociedade civil a partir de um diálogo também com os entes do Estado, para viabilizar um financiamento mais adequado do hospital, em que os gestores do SUS colaborem com as despesas de custeio e em que a universidade recomponha o quadro de profissionais.
“Ao final, [M.A.] Zago passará — deixará uma memória triste de uma visão pequena de universidade — e o HU permanecerá. Permanecerá vinculado a USP”. E vaticina, otimista: “E nós reconstruiremos o hospital e reconstruiremos a universidade”.

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